Em 14 de maio de 2023, aos 89 anos, Doyle Brunson deixou as mesas para entrar de vez na história como uma lenda do poker. Inconfundível com o chapéu de cowboy na cabeça e conhecido como “Texas Dolly”, Brunson foi por décadas referência e inspiração no poker mundial – merecendo um lugar no Hall da Fama e o apelido de “Godfather (padrinho) do poker”, graças à sua enorme influência no jogo e fama de ser o “maior jogador da história do poker”.

Origens e início no poker

Doyle Frank Brunson nasceu em 10 de agosto de 1933, no pequeno vilarejo de Longworth , Texas . Desde jovem mostrou talento competitivo: foi campeão estadual dos 1.500 metros no atletismo escolar e destaque do basquete universitário, chegando a chamar a atenção do Minneapolis Lakers da NBA. Seus planos esportivos, porém, foram interrompidos por uma grave lesão – uma fratura exposta na perna – que acabou com o sonho de jogar basquete profissionalmente.

Formado em Administração, Brunson trabalhava como vendedor quando descobriu no poker um novo caminho: em certa ocasião, ganhou em poucas horas, numa mesa de poker, mais dinheiro do que recebia em um mês de salário. A partir daí, decidiu se dedicar profissionalmente ao jogo.

Jogando pelos Lakers antes da lesão no joelho.

No fim dos anos 1950 e início dos 60, Brunson mergulhou no circuito clandestino de poker no sul dos EUA. Ele frequentava jogos ilegais no Texas organizados por criminosos – um ambiente em que chegou a presenciar um jogador ser assassinado a tiros durante uma partida, razão pela qual carregava sempre um revólver na cintura para se proteger. Nessas mesas nada amistosas, Doyle sofreu assaltos e ameaças, perdeu todo seu dinheiro diversas vezes (muitas para trapaceiros) e até foi preso por participar desses jogos. Ainda assim, sua paixão pelo poker falou mais alto. Ao lado de outros road gamblers (algo como jogadores andarilhos) texanos, como Amarillo Slim e Sailor Roberts , Brunson percorreu cidades em busca dos mais diversos jogos, afiando seu jogo contra todo tipo de oponentes.

Pioneiro na World Series of Poker (WSOP)

No fim da década de 1960, Las Vegas começava a se tornar o novo lar do poker, e Doyle fez parte dessa migração histórica. Em 1970, o empresário Benny Binion organizou a primeira World Series of Poker (WSOP) – um torneio que reuniria os melhores jogadores para definir um “campeão mundial” – e Brunson estava entre os convidados na estreia do evento. Doyle se estabeleceu em Las Vegas e foi fundamental para dar credibilidade e ajudar a alavancar a WSOP em seus anos iniciais, que então ocorria no casino Horseshoe sob o comando de Binion.

Em 1976, Brunson sagrou-se campeão do Main Event da WSOP (evento principal do campeonato), e repetiu o feito em 1977 – tornando-se bicampeão mundial de poker. Curiosamente, nas duas vitórias a mão final de Doyle foi um 10-2, uma das combinações teoricamente mais fracas do Texas Hold’em, mas que desde então ficou conhecida como a “mão do Doyle”. Naquela época, a WSOP ainda era um torneio modesto, com poucas dezenas de participantes, mas os prêmios ganhos por Brunson foram recordes para o período. Após esses títulos, ele tornou-se o primeiro jogador de torneios a ultrapassar a marca de US$ 1 milhão em ganhos acumulados na carreira – um feito incrível que ajudou a popularizar o poker para além das mesas de cassino.

Campeão do Main Event da WSOP (Foto: Tony Korody/Sygma, via Getty Images)

Títulos e feitos históricos

Os triunfos de 1976 e 1977 foram apenas o começo da coleção de conquistas de Doyle Brunson. Ao longo das décadas seguintes, ele acumulou 10 braceletes da WSOP, marca que o coloca entre os maiores vencedores da história do torneio. Esse número o deixou empatado por muito tempo com outras lendas como Johnny Chan e Phil Ivey , atrás apenas de Phil Hellmuth (detentor do recorde de braceletes). 

Doyle e seus 10 braceletes (Foto: Card Player)

Vale destacar que Brunson atingiu esse patamar mesmo sem focar tanto em torneios – diferentemente de muitos colegas, Doyle sempre preferiu as partidas cash game aos MTTs. Anos depois, ele admitiu que queria ter focado mais nos torneios de poker. Ainda assim, em eventos oficiais, ele conquistou mais de US$ 6 milhões em prêmios ao longo da carreira, incluindo, além da WSOP, títulos em outros circuitos.

Em 2004, já aos 70 anos de idade, venceu o torneio Legends of Poker do World Poker Tour (WPT), tornando-se o primeiro jogador da história a conquistar tanto um título do WPT quanto o principal título da WSOP. Reconhecido por seus pares como um gigante do esporte, Brunson foi introduzido no Poker Hall of Fame em 1988, imortalizando seu nome entre os maiores jogadores de todos os tempos. Até seu filho Todd Brunson seguiu seus passos – anos depois, Todd também venceria um bracelete da WSOP e entraria para o Hall da Fama, formando com Doyle a primeira dupla de pai e filho a conseguir tais honrarias.

Entre outros feitos notáveis, Doyle Brunson participou de inúmeras mesas finais de grandes torneios ao longo de sete décadas e nas vezes em que competiu no Main Event da WSOP após os anos 1970, teve grandes resultados (foi 3º colocado em 1980 e 1983, por exemplo). Essa consistência em alto nível, tanto em torneios quanto nos caros jogos de cash, consolidou Brunson como uma verdadeira lenda viva do jogo.

“Texas Dolly” e a influência sobre gerações

A influência de Doyle Brunson no poker é difícil de mensurar – poucos indivíduos tiveram um impacto tão profundo e duradouro no jogo. Apelidado carinhosamente de “Texas Dolly”, ele se tornou uma figura mítica, ponte entre a velha guarda dos road gamblers e as novas gerações da era televisiva e online.

Sua longevidade impressiona: Brunson competiu em alto nível por quase sete décadas. Mesmo após os 80 anos de idade, continuava enfrentando com sucesso os jovens profissionais nas mesas high stakes de Las Vegas, sem intenção de parar – como ele próprio dizia, “não paramos de jogar porque envelhecemos; envelhecemos porque paramos de jogar”.

Phil Ivey foi adversário de Doyle Bruson em muitos programas de high stakes cash games (Foto: PokerGo)

Essa filosofia se refletia em sua presença constante nos grandes jogos: poucos meses antes de falecer, Doyle ainda era visto nos cash games mais caros de Las Vegas. Em termos de influência, Brunson acompanhou e provocou transformações no jogo, adaptando-se a cada era do poker. Nos anos 1990, quando análises matemáticas e teoria dos jogos ganharam espaço, ele incorporou essas ferramentas ao seu estilo; nos anos 2000, com o poker explodindo na televisão, lá estava Doyle estrelando programas como High Stakes Poker e Poker After Dark, levando o jogo a um novo público.

Em 2006, a revista Bluff o elegeu como a pessoa mais influente do mundo do poker na época, um reconhecimento formal de algo que jogadores já sabiam na prática. Profissionais de todas as idades reverenciam Brunson: veteranos lendários como Billy Baxter  e Steve Zolotow e astros mais jovens como Tom Dwan e Daniel Negreanu sempre destacaram a honra que foi dividir uma mesa com o “Texas Dolly”. Esses jogadores – e muitos outros – guardam memórias vívidas de Doyle competindo contra eles, seja em uma final de WSOP, em um cash game televisionado ou na mítica sala Bobby’s Room (renomeada “Legends Room”) no Bellagio, em Las Vegas. 

Autor de Super System e contribuições teóricas

Doyle Brunson não foi apenas um jogador; foi também um teórico e divulgador do poker. Em 1979, capitalizando sua fama de bicampeão mundial, ele lançou o livro How I Made Over $1,000,000 Playing Poker, uma obra pioneira que revelou ao grande público segredos e estratégias antes restritas aos círculos profissionais. Pela primeira vez, jogadores amadores puderam aprender as táticas de um campeão, entendendo conceitos de probabilidades, blefes e leitura de adversários diretamente de quem dominava as cartas.

O livro se tornou um best-seller e, em novas edições revisadas, ganhou o título de Super System – sendo frequentemente chamado de “a Bíblia do Poker” por sua influência duradoura no desenvolvimento do jogo. O próprio Brunson admitiu que, de tão completo, o livro acabou ensinando oponentes a jogarem melhor, o que lhe “custou dinheiro” em algumas mesas no futuro, tamanho o avanço técnico que proporcionou aos leitores.

Os livros Super System são os mais vendidos da história do poker (Foto: Denise Truscello/Getty Images)

Em 2004, Doyle lançou uma sequência atualizada, Super System 2, reunindo capítulos escritos por ele e outras estrelas do poker, cobrindo novas modalidades e estratégias modernas. Além desses, Brunson assinou outros livros importantes, como Poker Wisdom of a Champion e sua autobiografia The Godfather of Poker. Por meio desses trabalhos, Brunson contribuiu imensamente para a teoria do poker, formando gerações de jogadores estudiosos. Muitos dos profissionais de sucesso das últimas décadas apontaram o Super System como leitura fundamental em sua formação, e até hoje as dicas de Brunson são revisadas e respeitadas nos círculos estratégicos do esporte.

Curiosidade: Nos primórdios, antes dos estudos estatísticos do poker, Doyle se sentava durante dias e ficava batendo flops, turns e rivers contra mãos específicas e anotando as probabilidades em um caderno. Um fato engraçado é que, segundo ele, os jogadores (não ele) acreditavam que AKs era pior que AKo pois só conseguia fazer um flush.  

Legado e despedida

Doyle Brunson faleceu em Las Vegas em 14 de maio de 2023, deixando órfã a comunidade do poker que perdeu seu membro mais icônico. A notícia de sua morte repercutiu por todo o mundo do jogo: jogadores, fãs e organizações prestaram tributo ao homem que encarnou a própria história do poker. Durante a WSOP de 2023, em meio aos eventos em andamento, Brunson foi homenageado publicamente – e decidiu-se que 2 de outubro (10/2, na denotação american, em referência à sua famosa mão vencedora) passaria a ser celebrado como o “Dia do Doyle Brunson” entre os amantes do poker. Nesse dia, mesas ao redor do mundo relembraram a lenda e muitos jogadores faizeram questão de jogar a mão 10-2 em sua memória.

O legado de Doyle Brunson permanece vivo nas cartas e além delas. Ele inspirou gerações a perseguir o profissionalismo no poker, seja pela sua postura destemida nas mesas clandestinas do Texas, seja por suas conquistas nos palcos internacionais em Las Vegas. Suas estratégias e ensinamentos ajudaram a moldar o jogo moderno – conceitos que ele disseminou em livros e aplicou nas mesas, hoje são fundamentos do poker moderno. Brunson também mostrou que o poker pode ser um jogo de longevidade e inteligência, no qual experiência e adaptação vencem o tempo.

Conhecido e reverenciado como o “Padrinho do Poker”, Doyle Brunson personificou a evolução do jogo do velho oeste americano a um esporte mental de alcance global. Sua ausência é sentida, mas suas histórias, lições e o exemplo de paixão pelo poker garantem que sua lenda continue crescendo. Em cada all-in corajoso, em cada livro de estratégia folheado por um iniciante, lá estará um pouco de Doyle Brunson – o eterno Texas Dolly – sorrindo com seu chapéu de cowboy e acenando como quem diz: “Um homem com dinheiro não é páreo para um homem com uma missão”.

Doyle faleceu aos 89 anos, em Las Vegas (Foto: PokerGo)

Frase icônicas

Você pode tosar uma ovelha muitas vezes, mas só pode esfolá-la uma vez.

O No-Limit Hold’em é o Cadillac do poker.

Não paramos de jogar porque envelhecemos. Envelhecemos porque paramos de jogar.

Poker é guerra. As pessoas fingem que é um jogo.

O poker mostra seu caráter. Você não consegue esconder quem é na mesa.

A chave do No-Limit é forçar alguém a tomar uma decisão por todas as suas fichas.

Um homem com dinheiro não é páreo para um homem com uma missão.

Sorte é o que acontece quando a preparação encontra a oportunidade.

O Super System não foi escrito para te ensinar a me vencer. Foi escrito para te ensinar a vencer todos os outros.

Braceletes da WSOP